Privatização da COSANPA: Como a Concessão Vai Tirar o Pará do Esgoto

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O Pará decidiu mudar radicalmente a forma como leva água tratada e esgoto para a casa dos paraenses — e, pelos números, dá para entender por quê. Em média, só cerca de 60% da população urbana dos municípios paraenses atendidos pelo plano regional de saneamento recebe água tratada de forma regular, e há lugar em que esse índice despenca para 4,4%. Já em esgoto, a realidade é ainda mais dura: em 105 dos 126 municípios avaliados, o índice oficial de coleta e tratamento é literalmente 0%.

Em paralelo, a estatal Cosanpa, que deveria garantir o serviço, acumula prejuízos operacionais na casa de centenas de milhões de reais por ano e vê seu patrimônio derreter sob fiscalização do Tribunal de Contas do Estado. Diante desse cenário, o governo estadual colocou praticamente todo o sistema de água e esgoto do Pará — 126 dos 144 municípios — sob concessão privada, num contrato bilionário estruturado junto ao BNDES. O movimento é vendido como condição de sobrevivência: ou entra dinheiro privado pesado, ou o Pará não cumpre o novo marco do saneamento básico, que determina universalizar água e esgoto até a próxima década.

O retrato do saneamento no Pará

Para entender a ruptura, é preciso encarar o diagnóstico. O Plano Regional de Saneamento Básico (PRSB) montado para o estado calculou que o índice médio de atendimento com abastecimento de água potável nos municípios analisados é de 60,7%, mas a distribuição é caótica: há municípios beirando 100% e outros com cobertura de apenas 4,4%. Em outras palavras, em boa parte do Pará, especialmente no interior ribeirinho e nas áreas rurais dispersas, abrir a torneira ainda não significa, de forma estável, ter água tratada.

No esgoto, o quadro é muito pior. O PRSB aponta que o índice médio de coleta e tratamento é de apenas 11,6%, e em 105 dos 126 municípios avaliados o indicador oficial é simplesmente 0%. Isso significa que quase todo o esgoto doméstico ainda corre para fossas rudimentares, igarapés e rios, contaminando justamente as fontes de água que depois precisam ser tratadas. É um ciclo caro, ineficiente e perigoso para a saúde pública — e que empurra para cima o custo futuro do sistema.

Além de baixa cobertura, há desperdício gigantesco. O próprio estudo técnico registra perdas de água na distribuição superiores a um terço do volume produzido (34,55% segundo dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), além de perdas no faturamento em torno de 37,78%. Traduzindo: muita água tratada some em vazamentos, ligações clandestinas e medição ruim antes mesmo de virar receita. Esse tipo de perda corrói o caixa e, pior, sinaliza rede velha, mal operada e difícil de manter.

O PRSB também mostra um mosaico técnico fragmentado. Em vez de um sistema integrado, o Pará opera dezenas de sistemas isolados, como “Sistemas Simplificados de Abastecimento de Água” em vilas e comunidades e pequenos centros de abastecimento espalhados sem padronização. Isso encarece manutenção, dificulta controle de qualidade e torna cada reparo uma operação sob medida. Na prática, a engenharia é artesanal quando deveria ser industrial.

E há, por cima de tudo, um relógio correndo. O novo Marco do Saneamento Básico impõe metas agressivas: basicamente 99% de cobertura de água tratada e cerca de 90% de esgoto coletado e tratado até 2033, com possibilidade de extensão controlada até 2039/2040 em casos excepcionais. O próprio PRSB estima que, para chegar lá, seriam necessários investimentos de grande porte: algo na ordem de 6,3 bilhões de reais em água e 12,2 bilhões de reais em esgoto — quase 18,6 bilhões somados — apenas para universalizar os serviços. O BNDES fala em cerca de 18,8 bilhões de reais em CAPEX (despesas de capital) vinculados à concessão para viabilizar essas metas. É dinheiro que o estado, sozinho, não consegue colocar na rua.

Cosanpa: origem, missão e colapso do modelo

A Cosanpa (Companhia de Saneamento do Pará) é uma sociedade de economia mista criada pelo governo estadual na virada dos anos 1960 para 1970, com a missão formal de captar, tratar e distribuir água potável e operar coleta e tratamento de esgoto em áreas urbanas do Pará. A ideia era clássica: uma estatal centralizada, capaz de planejar e executar infraestrutura essencial em escala estadual, num momento em que os municípios não tinham músculo técnico nem financeiro.

Só que o desenho institucional envelheceu e quebrou. Em vez de entregar expansão consistente, a companhia passou décadas operando com baixa cobertura de água e praticamente nenhuma cobertura de esgoto em grande parte do território. O próprio PRSB mostra que vastas áreas simplesmente não contam com rede de coleta e tratamento formal. Ou seja: a estatal, sozinha, não conseguiu empurrar o Pará nem perto do patamar mínimo exigido hoje pela lei nacional de saneamento.

Financeiramente, a situação é dramática. Auditorias e demonstrações analisadas pelo Tribunal de Contas do Estado (TCE-PA) registram que a Cosanpa vem acumulando prejuízos operacionais recorrentes: só em um dos exercícios recentes o rombo apurado ultrapassou 285 milhões de reais, e o patrimônio líquido da companhia caiu de cerca de 641 milhões de reais para menos de 475 milhões, revelando deterioração acelerada da base patrimonial. O TCE-PA descreve, em essência, uma empresa que gasta mais do que arrecada para manter uma infraestrutura que já não se paga. Veja no gráfico abaixo a série histórica de rombos no saldo operacional da Cosanpa nos ultimos 10 anos:

E esse resultado positivo de pouco mais de R$ 1 bilhão em 2023? a Cosanpa finalmente passou a dar lucro e se tornou sustentável em 2023?

A resposta é: Não!

Esse resultado positivo de 2023 originou-se majoritariamente da renegociação da dívida junto à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, conforme Termo de Transação Individual celebrado em 2023. Esse tipo de acordo normalmente prevê perdão de multas, redução de juros acumulados e reescalonamento do principal. Contabilmente, quando você perdoa parte de uma dívida, isso entra como “ganho” para a empresa — e esse ganho aparece no resultado como “outras receitas”. Se formos olhar apenas os resultados operacionais (produção e venda de água), a Cosanpa registrou um déficit R$ 196,6 milhões.

Se corrigirmos todos esses valores apresentados no gráfico pelo IPCA, a preços de dezembro de 2024, a Cosanpa acumulou um rombo da ordem de R$ 2 bilhões só nesses ultimos dez anos, a serem custeados pelos pagadores de impostos, que além de terem que tomar água enferrujada e defecar no buraco, tem que trabalhar para pagar o tamanho desse buraco nas contas públicas do governo paraense.

E não é só caixa negativo. A Cosanpa opera redes antigas, com índice de perdas de água altíssimo e baixa eficiência de cobrança. Quando metade da água tratada não vira faturamento, a capacidade de investir em expansão e modernização simplesmente desaparece. Some a isso a fragmentação técnica: a companhia (junto com prefeituras) administra uma colcha de retalhos de sistemas isolados, vilas ribeirinhas e municípios inteiros sem padrão unificado de engenharia, automação, controle de perdas ou qualidade de água. É caro para operar, é caro para consertar e é quase impossível escalar.

Por fim, existe a pressão legal de prazo. A Cosanpa teria de universalizar água e elevar esgoto a patamares de quase 90% em menos de dez anos — e fazer isso com uma estrutura endividada, patrimônio corroído e capacidade de investimento cronicamente insuficiente. Se não fez isso em 65 anos de operação, como fará em menos de 10 anos? Foi nesse ponto que o governo estadual explicitamente passou a tratar a estatal não mais como protagonista da expansão, mas como um obstáculo regulatório a ser contornado.

A concessão “Águas do Pará” e o novo arranjo

Para romper esse impasse, o governo do Pará estruturou, com apoio técnico e financeiro do BNDES, uma grande concessão regionalizada de saneamento. O modelo dividiu o estado em blocos (A, B, C e D) e ofereceu à iniciativa privada a obrigação de produzir, tratar e distribuir água e implantar sistemas de esgoto em 126 dos 144 municípios paraenses, com metas de universalização e um pacote de investimentos projetado em aproximadamente 18,8 bilhões de reais ao longo do contrato. A empresa vencedora — apresentada ao público como “Águas do Pará”, controlada pelos grupos: Equipav, Itaú e o fundo soberano de Singapura — assume a operação comercial e a expansão da rede nesses blocos.

O desenho é bem diferente do velho modelo centralizado. Na Região Metropolitana de Belém, por exemplo, a Cosanpa não some de imediato, mas passa a atuar sobretudo como produtora de água no atacado: ela capta e trata a água bruta para Belém, Ananindeua e Marituba e vende essa água tratada para a concessionária privada “Águas do Pará”, que então cuida da distribuição final para os consumidores e da cobrança. É um rebaixamento explícito de função: de “dona da torneira” a fornecedora upstream. A lógica oficial é que isso preserva o know-how de captação e tratamento de grande escala que a estatal ainda domina, mas transfere a parte comercial, de expansão de rede e de esgoto — justamente onde ela fracassou historicamente.

Nem todo o Pará entrou nesse pacote. Segundo os anexos de área de concessão publicados pelo estado e pelo BNDES (blocos A, B, C e D), ficaram de fora 18 municípios que já tinham arranjos próprios, inclusive concessões locais privadas ou modelos municipais específicos, e que portanto não migraram para o guarda-chuva da “Águas do Pará”. São eles:

Abel Figueiredo, Barcarena, Bom Jesus do Tocantins, Curionópolis, Eldorado do Carajás, Itupiranga, Jacundá, Novo Progresso, Novo Repartimento, Pau D’Arco, Redenção, Rurópolis, Santana do Araguaia, São Domingos do Araguaia, São Geraldo do Araguaia, São João do Araguaia, Tucumã e Xinguara.

Em muitos desses casos — Barcarena é um exemplo visível — já existiam operadores privados atuando antes mesmo da licitação estadual, o que inviabilizaria juridicamente uma sobreposição de contratos.

Esse arranjo também dá escala financeira e regulatória. Em vez de cada prefeitura negociar sozinha e ficar refém de orçamentos minúsculos, o contrato regionalizado concentra metas, cronograma e fontes de financiamento em uma única estrutura com metas claras: mais de 99% de cobertura de água tratada e salto de esgoto para patamares próximos de 90% até 2033 (ou, em casos específicos, até 2039/2040). É, na prática, a tentativa de comprar tempo e capital para cumprir a lei federal num estado de dimensões continentais e realidade hídrica amazônica.

Olhe o conjunto e a mensagem é direta: manter tudo como estava era uma aposta quase certa no colapso. A Cosanpa nasceu para ser a espinha dorsal do saneamento paraense, mas chegou em 2020-2025 como uma empresa financeiramente combalida, com perdas altíssimas, patrimônio corroído e incapaz de universalizar água e criar rede de esgoto na velocidade exigida pela legislação. O PRSB e os estudos do BNDES mostraram que o volume de investimento necessário — quase 19 bilhões de reais para elevar água e esgoto a padrões mínimos — está simplesmente fora do alcance da estatal.

Ao empacotar 126 municípios em blocos e atrair um operador privado com metas contratuais duras e fiscalização formal, o governo estadual basicamente redesenha quem manda na torneira — e quem paga a conta. A Cosanpa, rebaixada a produtora de água atacadista apenas em Belém, Ananindeua e Marituba, vira uma peça transitória de um tabuleiro maior, e não mais a grande operadora estadual. A mensagem política é clara: o Estado do Pará decidiu que, para cumprir a lei, proteger a saúde pública e destravar investimento, precisava tirar a Cosanpa do volante.

Se esse plano entregar o que promete — água tratada praticamente universal, esgoto coletado e tratado em escala e redes modernizadas — a tendência natural é que a Cosanpa seja gradualmente esvaziada até perder totalmente relevância operacional, abrindo caminho até mesmo para sua extinção formal no futuro. E isso não é um fracasso: é o desfecho desejado. Afinal, em saneamento, o que importa ao cidadão paraense não é quem segura a caneta — é se a água chega limpa, de forma contínua e se o esgoto finalmente deixa de correr a céu aberto.

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